22 de dezembro de 2008

Do Nosso Lado


Em meio à garoa, em uma noite fria na cidade de São Paulo, foi fácil confundi-los com o lixo. Qualquer saco plástico embaixo de pontes ou prédios, um amontoado de papelão, qualquer movimento, já se diminuía a velocidade do carro e os vidros se abaixavam à procura deles. Não eram animais, como cães ou gatos, que dedicamos nosso sorriso de compaixão toda vez que encontramos algum na rua sem dono; eram, sim, homens e mulheres, dos mais jovens aos mais velhos, do sozinho embaixo do viaduto ao casal aconchegado próximo a igreja. São aproximadamente 10.000 moradores de rua na maior metrópole do país.

Cansados de apenas conversar sobre Deus e a ajuda ao próximo, um grupo de amigos resolveu sair às ruas de São Paulo. Não com a pretensão de resolver os problemas dos moradores de rua. Desejavam buscar um contato maior com essas pessoas tão próximas, mas de realidade tão distinta. Depois que o gerente do restaurante da UNASP Campus I gentilmente cedeu quase todo o alimento necessário, a equipe preparou sanduíches, sucos e rumou à Santo Amaro, bairro da Zona Sul da cidade.

Poucos minutos no local e já encontraram junto ao Terminal de ônibus a primeira família. “Ah, aqui não tem crianças, graças a Deus”, disse um mais jovem quando perguntado sobre a questão de menores na rua. “A única criança aqui é a minha mulher”, atravessou um senhor negro de barba branca, dentro de uma barraca com a sua companheira. Uma enfermeira do grupo demonstrou preocupação com a situação. “Mas o senhor usa sempre camisinha, certo?”. O senhor desconversou. A alguns metros da cena, o rosto de outro ajudado sangrava. Não dava pra saber o motivo. O medo misturado com a inexperiência nesse tipo de situação fez a moça entregar o lanche e voltar rápido, preocupada com a própria segurança. O que teria acontecido? Como irá se tratar? No carro, a notícia do sangramento trouxe uma sensação de agonia: “nada será suficiente”. Sensação que voltaria mais tarde aos corações daqueles jovens, e jamais sairia.

Como marinheiros de primeira viagem, um erro em poucos minutos foi notado. Apesar de haver muitos necessitados, aquele não era o bairro certo. Era difícil encontrá-los. O centro de São Paulo sem dúvida é também o centro dos moradores de rua, por isso, rumaram para lá. No caminho, ainda em Santo Amaro, encontraram outros amigos e, juntos, distribuíram àqueles que avistavam no caminho mais alguns lanches.

Agora, eram três carros. Todos com um pouquinho de suprimento. Chegaram ao centro e em alguns minutos o primeiro carro ligava ao outro de trás. Sua parte havia acabado e, por ser tarde, voltavam para casa. “Vai faltar muito lanche”, o restante pôde perceber. Não estavam errados. Se outrora se procurava a quem dar, dessa vez tropeçava-se neles, à medida que o grupo se aproximava do marco zero da cidade.

Próximo à Prestes Maia, um homem magro estava com um dos braços estendidos, parado, sem camisa, olhando pra sua “casa” de papelão e plástico, como se mirasse onde pretendia ir. Os carros pararam. Uma das garotas, passageira do terceiro carro, descia apressada. Disseram pra esperar, um homem seria mais seguro. O motorista do segundo carro desceu com o lanche. O irmão deste, o cinegrafista, com medo, esquece a câmera e acompanha o entregador. Que homem era aquele? Quem seria? Um louco? Drogado? Bêbado? Ou tudo isso? “Senhor, trouxe um lanche para o senhor”, dizia o motorista. Ignorado, tentou novamente. E outra vez e mais uma. Aquele homem agora voltava lentamente para aquilo que chamava de leito. Sem dar nenhuma palavra, sem virar o rosto, sem nem se interessar pelo lanche. Como que desistindo, o motorista deu as costas, parou e voltou. Agora, o senhor, ainda com dificuldades para se equilibrar, se acomodava. O crack em suas mãos era possível notar. “Trouxe um lanche para o senhor, para tirar sua fome”, tentou mais uma vez. Já estava tomado pelo horror da cena quando descarregou “um lanche senhor, larga essa merda, ela vai te matar, larga essa merda” e deixou a refeição ao lado do homem. “Não importa se é bêbado, drogado ou se ele acha que quer ficar ali, é um humano vivendo como um cão. É simples!”, disse o motorista quando voltou ao carro, fazendo referência a tantas desculpas usadas ao se deparar com um pedinte.

No caminho, seguindo para a Praça João Mendes, encontraram mais quatro simpáticos moradores da rua embaixo de um viaduto. 200 metros dali, um punhado de jovens se amontoavam em frente a uma casa de dança. Não é sensacionalismo afirmar que surdos somos para não notarmos o grito silencioso daqueles que precisam de ajuda. Estão do nosso lado todos os dias. De tão cegos, tropeçamos neles e continuamos a fazer nada.

Chegaram à praça do fórum, onde entregaram os últimos sanduíches e sucos. Um casal bonito e bem cuidado dormia aconchegado à porta do prédio. Imagem tão linda quanto curiosa. Na volta, não sabiam exatamente qual sentimento manteriam em seus corações. A tristeza de não terem feito nada comparado a milhares daqueles existentes na cidade ou a vontade de cada dia fazer mais. Mantiveram aquele que fará ainda muita diferença.

Orgulho? Que orgulho teriam se com o quê comumente resta do restaurante mais o resto do dinheiro e com a força que restou ao fim de semana, puderam saciar a fome de poucos necessitados? De resto já estão fartos. Precisam de mais. Nós precisamos de mais. Enquanto o homem se enganar pensando que quanto mais se tem mais se deve ganhar, acumular-se-ão, dia após dia, mais e mais humanos desejando viver como nossos cães. Portanto, não façamos da ajuda àqueles que menos têm uma moda, que aos olhos é tão belo, mas ao fim da estação se acaba. Empenhemos mente e coração na busca de, senão uma solução, uma melhora na vida do nosso próximo.